“A atual discussão do ciclo completo de polícia afasta o debate e esconde o campo da política para aquilo que realmente importa em matéria de inovação policial: uma maior valorização, investimento, preparo e respeito as polícias e ao policial brasileiro”
Palestra proferida pelo Delegado de Polícia Dr. Rodrigo Bueno Gusso (*), durante Audiência Pública da Comissão Especial da Câmara dos Deputados (04/02), sobre a discussão da adoção, para todas as polícias, da competência legal para investigação.
Excelentíssimo Sr. Deputado Subtenente Gonzaga, Presidente desta Comissão Especial;
Excelentíssimo Sr. Deputado Hélio Costa, autor da proposta de convite para que eu pudesse comparecer a este evento;
Excelentíssimos Senhores Deputados membros desta Comissão e demais que se fazem aqui presentes, Autoridades Civis e Militares, policiais que aqui estão, meu muito boa tarde!
Para mim é uma honra mais uma vez retornar a essa casa para contribuir ao debate acerca da competência legal na investigação criminal, mais precisamente quanto a possibilidade do poder de investigação a todas as polícias brasileiras. Assunto antigo aqui debatido, mediante inúmeras propostas legislativas de emendas à Constituição nas duas últimas décadas. Tanto nessa Câmara dos Deputados, como igualmente, no Senado Federal.
Sabemos que a busca de um modelo novo de policiamento ganha espaço mediante a trágica situação de insegurança em que, atualmente, vive a sociedade brasileira. Uma insegurança não apenas sofrida pelo cidadão comum, mas também por nós, policiais. Se há quem diga que a polícia brasileira é a que mais mata, também há quem diga, e eu sou um deles, de que os policiais brasileiros são os que mais morrem.
E assim, em tempos em que o aumento da violência bate em nossas portas, é natural que surjam as mais variadas ideias como possíveis respostas ao fenômeno da criminalidade. É certo que vivemos uma certa inquietude social que requer uma imediata interferência do Estado por meio de políticas públicas na área de segurança, mas que, essas políticas, sejam apresentadas de forma séria, legal e responsável. São esses atributos que constroem uma verdadeira política criminal.
No avesso da razão, do bom senso e da própria democratização histórica das instituições policiais, surge mais uma vez no Brasil a proposta da implementação do denominado “ciclo completo de polícia”.
O presente projeto ganha fama, porque imputa ao cidadão e a classe política a falsa ideia de um controle policial mais eficaz e célere.
Em resumo, o ciclo completo proporcionaria o poder de investigação e formalização da prisão a toda e qualquer espécie de instituição policial, não importando sua natureza e atribuições.
A ideia advém como uma promessa inexequível de uma melhor e mais rápida diminuição da criminalidade, como se fosse este o único e mais eficaz caminho a ser seguido. O ciclo completo de polícia, ainda que sua reprovação seja histórica, conforme, por exemplo, a crítica proposta pelo editorial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais em junho de 2009 (uma das mais respeitadas e sérias organizações que produz e divulga conhecimento nas áreas da criminologia e segurança pública no país), insiste em se apresentar como fórmula mágica na atuação legislativa eficiente e, o pior, sua atual discussão afasta o debate e esconde o campo da política para aquilo que realmente importa em matéria de inovação policial: uma maior valorização, investimento, preparo e respeito as polícias e ao policial brasileiro.
O processo de redemocratização brasileiro, por meio da promulgação da Constituição 88, disciplinou a matéria segurança pública (art. 144 da CF) indicando duas espécies de polícia: as Polícias Administrativas (com a função de prevenir a prática do crime) e as Polícias Judiciárias, essa última tendo por atribuição a apuração de infrações penais e sua autoria, por intermédio de procedimentos exclusivos, quais sejam: o Inquérito Policial, Termo Circunstanciado, Auto de Prisão em Flagrante, etc.
Uma das justificativas daqueles que defendem a adoção do ciclo completo é a alegação de baixo índice de resolubilidade de crimes pelas polícias judiciárias. Tal argumentação é facilmente rebatida: – Invista-se melhor nas Polícias Civis e Federal, pois assim, certamente elas irão desempenhar suas atribuições com maior eficiência. Como dito, não há fórmula mágica senhores, enquanto não se pensar em investir melhor nas polícias, todas as tentativas de mudanças institucionais: ciclo completo, unificação, desmilitarização, municipalização da segurança pública, dentre várias outras propostas, seriam em vão.
Venho de um estado, senhores deputados, que nos últimos anos apresentou uma melhora significativa do controle da criminalidade. E isso não se deu a nenhum fato extraordinário ou legal, mas especialmente em função de um melhor investimento nas nossas forças policiais e também diretamente aos nossos próprios policiais.
Alguns dos nossos índices equiparam-se aos índices de países de primeiro mundo. Por exemplo, em Santa Catarina, no ano de 2019, em todo o Estado, tivemos uma taxa de resolução de homicídios de 66%, e na última década esta taxa variou entre os 70%. Muito, mas muito além da taxa nacional que é estimada em 6%.
A título de comparação, nosso índice é maior que o índice americano, cujo percentual é de 60%, e muito se aproxima ao índice da França, estimado em 80%. Digo aos senhores, que em Balneário Camboriú, o maior destino turístico de nosso Estado, uma população que na alta temporada de verão ultrapassa um milhão de habitantes, no ano de 2019, tivemos 100% dos homicídios solucionados.
Em Santa Catarina, há mais de 30 anos, não temos um caso de sequestro com cárcere privado sem a devida resolução, com a prisão dos sequestradores e a recuperação do pagamento dos resgates. Esse é um exemplo do trabalho desenvolvido há décadas pela Divisão Antissequestros da Polícia Civil catarinense.
Senhores Deputados, essa expertise policial na resolução de crimes complexos não se obteve de um dia para o outro, pelo contrário, é fruto de investimento e aperfeiçoamento há décadas no trabalho específico e centralizado de cada unidade policial.
Isso não é resultado de nenhuma inovação legislativa ou modificações estruturais nas instituições policiais, mas sim na seriedade com que esta espécie de crime foi tratada nos últimos anos em Santa Catarina, como por exemplo, a criação das Delegacias de Homicídios e Divisões de Investigação Criminal, as DICS, em âmbito regionalizado. Este é um exemplo claro, de que se realmente se deseja uma melhor investigação policial brasileira, invista-se nas polícias investigativas. Nossos índices falam por si.
O processo de formação e aperfeiçoamento de nossos policiais, por meio das nossas academias de polícia, melhorou substancialmente nos últimos anos. E isso, reflete diretamente no trato diário do policial com o cidadão. A qualquer cidadão diga-se, independente ser ele a vítima ou o autor de um crime. Assim, digo a vossas excelências que nossa taxa de mortalidade e letalidade policial é extremamente baixa comparada com outros estados da federação.
Para exemplificar essa afirmação senhores, destaco que o número de mortes ocasionadas por policiais civis catarinenses em serviço em todo o Estado de Santa Catarina no ano de 2019 foi de apenas quatro pessoas.
Em Joinville, maior cidade de Santa Catarina, com aproximadamente 500 mil habitantes e local onde eu trabalho, o último registro de confronto de um policial civil em serviço que resultou na morte de um suspeito, foi em 2011.
Se seguirmos nessa linha, ano que vem fará uma década, na maior cidade catarinense diga-se, sem um único caso de morte perpetrado pela polícia civil local. Num país com uma alta taxa de mortalidade e letalidade policial, isso é algo a ser comemorado.
Esses índices senhores, nada tem a ver com eventual falência do atual sistema de segurança pública. Pelo contrário, mostra que investimento em formação policial, vontade pública e política na melhora das condições de trabalho dos nossos policiais, e principalmente, um olhar sério e responsável para a inteligência policial é o que faz a diferença.
Estamos em nosso Estado, dentre as três piores taxas de relação policial por habitante no país, tal fato requer que trabalhemos de forma integrada e colaborativa com as outras policias estaduais e federais, assim como, com as guardas municipais.
Em Santa Catarina, temos respeito as atribuições legais de cada polícia. A Polícia Militar, a Polícia Rodoviária Federal por exemplo, elaboram o procedimento de Termo Circunstanciado, mas não fazem, porque não são autorizadas legalmente, a condução da investigação criminal. Tais polícias preventivas, com exceção do Termo Circunstanciado, igualmente não produzem procedimentos exclusivos das policias judiciárias, como o Inquérito Policial, Auto de Prisão em Flagrante, dentre outros.
Entendemos que a inteligência policial que fundamenta a investigação criminal é um dos mais sérios atos da persecução criminal, pois é decorrente dessa atividade que a liberdade do indivíduo pode ou não vir a ser cerceada em uma ação penal.
Para conduzir uma investigação criminal necessita-se de uma qualificação, instrução, e capacitação jurídica adquirida antes mesmo do ingresso desses agentes nas próprias academias de polícia. O conhecimento da legislação constitucional, do processo e do direito penal, mediante a graduação em direito, são pressupostos básicos para o controle e comando da investigação criminal.
Assim, é equivocada e, principalmente, temerária, a ideia de que qualquer policial ou guarda municipal tem a qualificação jurídica necessária para a tipificação correta do delito, a competência para a análise de todos os elementos e circunstâncias do crime, o conhecimento para opinar, e algumas vezes decidir, sobre a decretação de uma prisão preventiva, prisão temporária, auto de prisão em flagrante etc.
Quando falamos de ciclo completo de polícia, pensando em termos práticos, podemos defini-lo de forma sucinta: o cidadão, supostamente apontado como um autor de um delito poderá ser investigado ou autuado em flagrante por qualquer “agente da lei”, sendo ele, Guarda Municipal, Policial Militar, Policial Rodoviário, etc. A instrução funcional e capacidade jurídico-intelectual desses agentes, nesse caso, pouco importa.
Esta proposta possibilita que todos os órgãos de segurança procedam à lavratura de Auto de Prisão em Flagrante, garantindo, equivocadamente, um processo de competição saudável entre as instituições que compõem o art. 144 da Constituição Federal em prol de uma melhor política de segurança pública. O projeto parte do pressuposto errôneo que todos os policiais terão conhecimento e qualificação necessária para a análise processual e penal do delito.
Assim, é visível perceber a panaceia a ser criada: agentes sem formação técnica e jurídica tipificando uma conduta ilícita e decidindo sobre a privação ou não da liberdade do cidadão. Seríamos – TODOS NÓS – autuados e investigados por policiais, guardas, etc. sem a devida qualificação legal. Por exemplo, agentes graduados em geologia, biologia, educação física, engenharia civil, gastronomia, enfermagem, etc.
Isso quando não, essa autuação fora exercida por policiais que sequer tenham concluído o nível superior, como, em alguns municípios, pelas guardas municipais e, em alguns estados, por policiais militares.
Cabe lembrar Senhores Deputados, que a grande maioria dos concursos públicos para guardas municipais e policiais militares no Brasil exige-se tão somente o nível médio de escolaridade. E não raro, ainda percebemos a existência de policiais brasileiros com apenas o ensino fundamental. Não é necessário muito esforço para perceber que a nocividade dessa ideia pode vir a se traduzir em equívocos e abusos perpetrados a todo instante.
Aqueles que defendem o ciclo completo, alegam que é o modelo utilizado em vários países do primeiro mundo, como o Chile, Estado Unidos e a França, mas se esquecem de dizer que lá a adoção do ciclo completo é fundada em outras características institucionais e regras processuais próprias.
Por exemplo, em nenhum desses países citados existe sobreposição de competências entre as suas forças policiais, sendo a repartição das funções policiais estabelecidas, ou por especialidade ou por território, impede o caos e a perniciosa concorrência institucional, que deve ser evitada em todo ente estatal minimamente organizado.
Lembro a todos que no Chile existem duas polícias, os Carabineros e a Polícia de Investigação do Chile, ambas de ciclo completo, porém com competências materiais absolutamente distintas, sendo a Polícia de Investigação semelhante à nossa Polícia Federal.
Na França existem duas polícias de ciclo completo, uma militar, a Gendarmerie, e outra civil, a Polícia Nacional – a primeira cuida do policiamento não urbano, de regiões com até 10.000 habitantes, e, por sua vez, a Polícia Nacional tem como função o policiamento urbano (regiões com mais de 10.000 habitantes). Na França, a divisão existe principalmente para o Estado ter alternativa em caso de paralização de uma das forças, constituindo-se a força civil (Polícia Nacional) a guarda “das garantias das liberdades, e da defesa das instituições da República”. Isto é, uma clara alternativa a um modelo de poder armado totalmente militarizado.
Acreditamos na absoluta inaplicabilidade dos modelos estrangeiros, aventados como paradigmas ideais pelos defensores do ciclo completo no Brasil. Tal fato minimamente só faria sentido em um processo onde a concorrência de atribuições deixe de existir.
Senhores deputados, no período em que cursei o meu pós-doutoramento em Coimbra, Portugal, cuja temática de pesquisa era Polícia Brasileira, tive a oportunidade de visitar inúmeras instituições policiais europeias. Posso, então, seguramente dizer: Não encontrei nenhum sistema de segurança pública europeu com sobreposição de atribuições, como se quer fazer aqui no Brasil. O respeito aos limites legais de competência, evitando as usurpações institucionais, é característica que fundamenta as melhores e mais eficazes polícias europeias.
O ciclo completo depende da construção de uma nova instituição policial, pois adotar este modelo de atuação para a Polícia Militar ou para a Polícia Civil, sem modificar a estrutura vigente do modelo de Segurança Pública, além de fomentar a concorrência de atribuições e recursos, sobrecarregaria ainda mais ambas as instituições, onde a realidade brasileira nos mostra as dificuldades e as péssimas condições físicas e estruturais que afligem as nossas polícias.
Temas como a unificação policial precede este debate. E a criação de uma nova polícia precisa observar, além das limitações constitucionais, novas necessidades estruturais, como por exemplo, a possibilidade de independência funcional, autonomia orçamentária e as características civis de sua formação. Lembrando que, conforme entendimento pacífico da Organização dos Estados Americanos, e da própria ONU, a doutrina policial militarizada é incompatível com o sistema de investigação e de persecução penal comum em um regime de governo democrático.
Nessa linha, o ciclo completo só faria sentido mediante a criação de uma polícia única e desmilitarizada. Não podemos esquecer que na época da promulgação da Constituição brasileira, o constituinte originário, quando atribuiu caráter civil à polícia de ciclo completo da União, qual seja, a Polícia Federal, indicou seguir esse entendimento
Da forma que se quer, em uma eventual implementação dos modelos estrangeiros de investigação policial no Brasil, mantendo a atual estrutura das policias existentes, como dito, geraria uma concorrência institucional entre as polícias, especialmente entre as polícias estaduais, ocasionando caos em um projeto perigoso de anarquização da segurança pública.
Nesse sentido, deixo a pergunta:
– Quanto custaria aos cofres públicos incrementar atribuições concorrentes a cada uma das polícias que passariam a exercer a integralidade do trabalho investigativo?
Essa é uma pergunta que deve anteceder qualquer discussão sobre políticas públicas na área de segurança, ainda mais no atual contexto de crise econômica vivida.
Para se incrementarem novas atribuições às corporações policiais, uma nova estrutura precisaria ser construída. A corporação policial que só realizava o trabalho de prevenção precisaria de incremento para fazer a função investigativa e vice-versa. Afinal de contas, as usurpações de funções antes exercidas como uma faculdade, agora precisariam se tornar uma obrigação legal e, então, serem institucionalizadas.
Como é de conhecimento dos senhores, o Brasil é signatário de vários tratados e acordos internacionais (dentre eles o Pacto de San José da Costa Rica), sendo inúmeros os casos em que estas organizações internacionais manifestaram-se criticamente quanto à militarização da segurança pública e a possibilidade de instituições de perfil militar exercerem atividades intrinsecamente civis, como a investigação criminal nos crimes comuns.
É evidente, Senhores Deputados, que não é a repartição de funções o mal dos Sistemas de Segurança Pública ou Justiça Criminal brasileiros, sendo a aceitação dessa premissa a negação dos preceitos democráticos próprios da separação dos poderes. A repartição de funções públicas é feita principalmente para gerar controle de atos de soberania do Estado, de um órgão pelo outro, dentro do conceito de freios e contrapesos, evitando o caos decorrente da concorrência institucional.
Diante de tudo isso que foi exposto, podemos concluir que, na contramão da consolidação do Estado Democrático brasileiro, a adoção pura e simples do ciclo completo de polícia, por toda e qualquer instituição policial, sem a modificação de suas características, qualificações e atribuições, representaria o maior retrocesso em nível de política criminal brasileira. É um discurso infundado, uma ideia desarrazoada fruto da ansiedade da sociedade por respostas céleres ao fenômeno da criminalidade – campo fértil para políticas incoerentes com a desenvoltura da violência e o descontrole da criminalidade.
A adoção do ciclo completo advém de ideias e atos políticos desprovidos de qualquer tecnicismo e legalidade e, ainda pior, fecha o debate e esconde o campo da política para aquilo que realmente importa ser discutido em matéria de inovação policial brasileira: carreira única, desmilitarização, desburocratização, reforma processual, independência funcional e financeira das polícias, dentre outros temas.
*RODRIGO BUENO GUSSO é Delegado de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina .Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal; Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, UFPR, temática de pesquisa: controle social, crime e punição. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí-Sc, UNIVALI-SC. Especialista em Segurança Pública pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUC-RS. Professor titular da Academia da Polícia Civil – Sc. Professor de cursos de graduação, pós-graduação e formação de policiais civis, militares, guardas municipais e agentes penitenciários